segunda-feira, 29 de junho de 2015

Capítulo 18 – O Colar

Embora assustados com o que acabara de acontecer, tínhamos que dormir pois já não era nada cedo. Mickael dormiu no meu quarto. Não queria adormecer, pois tinha medo que os homens voltassem para me fazer mal.
A meio da noite, lá estava eu a ter outro pesadelo. Mickael acordou sobressaltado com o meu barulho. Estava a falar sozinha e a gritar.
Acordou-me e eu levantei-me da cama atemorizada. Só não caí no chão porque Mickael me agarrara.

- Calma, calma! Foi só um pesadelo. – Tentou acalmar-me.

Reparei que estava com a cara húmida, como se tivesse chorado. Todo o meu corpo estava suado. Olhei para ele, desorientada. Por vezes custava-me distinguir os sonhos da realidade.

- Não vales nada! És um monstro! – Desatei a chorar, queria bater-lhe.

Ele agarrou-me os braços e tentou pôr-me calma.

- O que se passa contigo? Foi só um sonho!

- Larga-me!

- Acalma-te e eu largo-te.

Parei de chorar. Ele largou-me e eu sentei-me na extremidade da cama, confusa.

- O que foi isto? – Observava-me atentamente.

Apenas minutos depois respondi.

- Desculpa… Estou tão farta destes pesadelos. Alguns correspondem ao meu passado, outros são apenas coisas que a minha imaginação cria. Como posso distingui-los? Isto tira-me do serio! Apenas queria lembrar-me de tudo de uma vez!

- Tem calma. Está tudo bem. – Virou-se para mim e abraçou-me até eu respirar de forma mais calma.

O silêncio que se instalou fez-me semicerrar os olhos e reencontrar a serenidade.

- Com que sonhaste?

- Contigo. Estavas armado e mataste o Matias.

Surpreendeu-se com a resposta.

- Não podes confundir sonhos com a realidade. Se apenas alguns correspondem a pormenores do teu passado, o melhor é não acreditares em nenhum. Dá tempo ao tempo. Tu vais lembrar-te de tudo, só tens que ter calma. – Beijou-me a testa. - Vá, tenta adormecer. Ainda é muito cedo.

Deitei-me e adormeci com Mickael a acariciar-me a face. 



Quando voltei a acordar, observei-o a dormir ao meu lado. Nesse momento reparei no quanto ele parecia perfeito enquanto dormia. Assemelhava-se a um autêntico anjo. Um Deus grego! A vontade de o beijar invadiu-me e assim o fiz, acordando-o num susto.

- Desculpa. – Soltei uma gargalhada.

Ele olhou para mim apaixonado.

- Desculpa? Esta é a melhor forma de alguém acordar! – Retribuiu-me o beijo.

- Tive outro sonho agora. – Captei a sua atenção. – Desta vez mais calmo. Sobre a minha ma… - Fui interrompida pelo som da campainha a tocar.

Caminhei rapidamente até ao pé da porta. Lembrei-me dos bandidos da noite passada e arrepiei-me. Espreitei medrosa pela janela e vi que era Matias.
Abri a porta e vi que trazia o Scarpy ao colo. Sem esperar um segundo agarrei-me ao cão, radiante de alegria.

- Scarpy! Oh, já tinha tantas saudades dele! Onde ele estava? – Perguntei para Matias, sem parar de beijocar o cão.

- Em minha casa. Tenho que admitir que me apeguei a ele mas ultimamente tem estado demasiado triste, nem sequer comia. Adivinhei que tinha saudades tuas!

O Scarpy lambia-me a cara, empolgado por me ver, no momento em que Mickael entrou na cozinha e estacou a olhar para nós.

 - Matias, que bom ver-te. – Ironizou, sorrindo sisudamente.

- Igualmente. – Alinhou Matias.

Olhei para os dois e não evitei largar um «Santa paciência…» em tom de suspiro.

- O Matias já estava de saída. – Disse depois. - Veio apenas devolver-me o Scarpy que pelos vistos tinha saudades minhas. – Este corria alegremente à minha volta.

- Espera. Queria falar contigo… - Começou Matias, quando Mickael largou um olhar impaciente.

- Não temos nada para falar Matias. Adeus, e… obrigada por trazeres o Scarpy. – Disse fechando-lhe a porta.

Virei-me para trás e o Mickael continuava em estátua, a observar-me.

- Querias o quê? Fiquei feliz por ele ter trazido o Scarpy. Não consigo fingir infelicidade.

- Não disse nada!

- Não é preciso, sei bem o que estas a pensar.

- Confio em ti. Só peço que não esqueças o que prometeste.

- E vou cumprir! Tu sabes que eu cumpro sempre o que prometo.

- Bom diaaaaaa! – Alegrou Nicole que acabara de acordar. – Dormiram bem?

- No meu caso seria um milagre. Mas por acaso acordamos bem-dispostos. – Pisquei o olho a Mickael fazendo Nicole soltar uma gargalhada perversa.

- Bem-dispostos até alguém aparecer e destruir o momento. – Concluiu Mickael.

- Oh! – Exclamou Nicole, reparando no Scarpy - O Matias trouxe-o? Finalmente! Até pensei que tinha decidido ficar com ele para te substituir. - Disse para mim, rindo-se. - E então qual foi o sonho que tiveste hoje? Acho que ouvi berros durante a noite…

Fiquei séria.

- O primeiro pareceu uma piada de mau gosto pregada por mim mesma. Sonhei com o Mickael completamente descontrolado com uma arma na mão, a alvejar o Matias. A última coisa que queria era que alguém se magoasse por minha causa. Fiquei tão irritada que mesmo depois de acordar queria bater ao Mickael! O segundo foi sobre a nossa mãe. Não sei porquê, mas acho que devíamos falar com ela sobre o que aconteceu ontem...

- Falar com quem? – Questionou Alice, ensonada, que acabara de entrar na cozinha, direta ao frigorífico.

- Com a Constança. No sonho eu tinha-a apanhado a esconder algo numa caixa. Perguntei-lhe o que era e ela respondeu-me que era algo demasiado importante para eu poder saber, garantindo-me que quando fosse mais velha me explicava tudo sobre aquilo.

- Já te disse que não devias considerar como lembranças reais tudo aquilo que te aparece nos sonhos. - Alertou Mickael.

- Eu sei! Mas é uma hipótese. Por isso é que digo que devíamos falar com ela. Talvez isso seja real, e se for, o que ela escondia pode ser o que os bandidos querem roubar!

- Sim, eu concordo. É preferível esclarecer as dúvidas. – Anuiu Alice. - Podemos ir a casa dela esta tarde.

- Então pronto. De tarde arranjem-se que eu vou a casa buscar o meu carro. Assim cabemos todos.

Depois de almoçar e da tarde iniciar, assim o fizemos. Durante o caminho, a viajem ia animada.

- Vais confortável Lúcia? – Perguntou Mickael, sorrindo para Nicole e esta começa-se a rir como uma desnorteada.

- O que foi? – Observei-os sem perceber.

- Quando eramos bebés os nossos pais chamavam-te Lúcia e tu odiavas, entravas em histeria e começavas a correr pela casa toda! – Disse Nicole contendo o riso. – Desculpa, contei isso ao Mickael anteontem... Assim como outros episódios interessantes da tua infância.

Olhei para os dois, envergonhada.

- Olha que da tua infância também me lembro bem de certos acontecimentos! – Ameacei em tom de brincadeira.

Mickael e Nicole continuaram-se a rir como dois tolos e Alice olhava -os como se estivesse a observar dois autênticos retardados.

Com isto chegamos ao nosso destino. Saímos do carro e aproximamo-nos da casa. Bati à porta três vezes e só depois percebi que esta estava apenas encostada. Então entrei. A casa era muito bonita. Toda ela estava bastante bem decorada, com quadros, jarros de flores, carpetes coloridas, num ambiente aconchegador. Felizmente, a minha mãe sempre teve bons gostos.

Entretanto Constança apareceu naquele compartimento e assustou-se com a minha presença, mas mal reparou que era eu, deu-me um pequeno abraço barrado de felicidade por me ver e convidou-me a sentar.

- Desculpa ter entrado sem avisar…

- Não faz mal. – Disse a minha mãe quando Mickael, Nicole e Alice entraram inesperadamente. – Hmm, afinal temos mais visitas!

- Mãe, se eles te incomodarem, é natural! – Disse Nicole rindo-se. - Nós fomos obrigadas a habituar-nos.

- Que piadinha! – Comentou Alice sorrindo.

Todos se sentaram e Constança ofereceu um chá a cada um, questionando qual o propósito da nossa visita.

- Bem, vou ser direta. – Comecei. - Eu e o Mickael fomos perseguidos e confrontados ontem à noite e foi, de certeza absoluta, pelos mesmos homens das outras vezes.

Constança observou as manchas feias que se notavam entre os espaços sem roupa e olhou para mim estupefacta. Talvez tenha sido um pouco direta demais nas minhas palavras.

- Mas eles agrediram-vos?! O quê que eles vos fizeram?

- Ahm… Não foram nada delicados na forma como nos trataram… Mas isso não é o mais grave, nem o motivo que nos trouxe aqui. Eles ameaçaram-nos. Disseram-me que eu tinha algo que eles procuravam há muitos anos e apesar de lhes ter garantido que não sabia do que falavam, insistiram e ameaçaram que na próxima vez que nos apanhassem não nos deixariam escapar vivos sem lhes entregar o que eles querem. Pensei que talvez nos pudesses ajudar, não só porque és minha mãe, mas também porque tive sonhos que podem estar relacionados com lembranças verdadeiras.

Constança olhou para todos nós, pensativa e distante.

- O que nós pensamos foi que… Por eles tanto procurarem, teria que ser algo valioso. Só pode ser algo especial que não se encontre facilmente. No meu sonho tu escondias algo de mim. Algo que eu não podia saber. Queria que tu me explicasses tudo o que sabes sobre isto.

- Algo valioso?...

- Sim, só pode ser! Os meus pesadelos foram exatamente sobre isso… Lembro-me… Lembro-me de ter visto um colar com grandes diamantes cravados. Mas isso foi só no meu sonho, se calhar nem existe. Era isso que queria esclarecer.
Por vários segundos, Constança sentiu-se perturbada e distante de todos, sussurrando para si mesma «Não pode ser… Não pode ser isso.».

- Está se a sentir bem? – Preocupou-se Alice.

- Sabes de alguma coisa? – Questionou Nicole – Por favor mãe, se sabes conta-nos! Estamos preparados para tudo. Temos que perceber o que se está a passar!

- Bem… há uma coisa que vocês não sabem. – Falava calmamente para mim e para Nicole. – A nossa família tem, desde séculos, uma peça intensamente valiosa que até hoje tem passado de pais para filhos. Pertenceu à minha visavó, passou para a minha avó que ofereceu à minha mãe e quando a minha mãe morreu, passou para mim…

- Então é isso! – Berrou Nicole. – Obviamente que é isso que eles querem. Porque nunca nos contaste?

- Bem, vocês não eram ainda muito responsáveis. Não podia revelar algo tão precioso a crianças. Fiz isso para prevenir o que está a acontecer. Não sei como não me apercebi mais cedo que pudesse ser isso que eles procuravam. Pensei que ninguém soubesse disto para além da nossa família.

- Mas que peça valiosa é essa? – Perguntei.

- É um colar… Um colar mesmo muito antigo, e é exatamente como o colar que tu descreveste do teu sonho. Todo ele é feito de ouro e pedras preciosas, muito raras de se encontrar. É muito pesado e tem muita importância simbólica e sentimental.

- Mas se tu nunca nos disseste nada sobre esse colar, como é que eu sonhei com ele?

- Bem… Eu nunca vos falei dele, mas cheguei a mostrar-vos. Vocês eram ainda muito novas, por isso devem ter-se esquecido disso.

- Sim, eu lembro-me desse colar! – Disse Nicole – Mas não me apercebi que era tão valioso. Nunca mais me lembrei disso sequer.

- E onde é que ele está agora? – Perguntou Mickael.

- Provavelmente coberto de cinzas… Eu nunca fui fã de muito dinheiro… Nunca liguei a isso, portanto só me preocupei em esconder na nossa antiga casa, num sítio único onde ninguém descobriria, para que não fosse roubado. Não contei a mais ninguém da família porque de certeza que haveria alguém que o ia querer vender e apoderar-se da fortuna dele. Eu não podia deixar que isso acontecesse. A minha mãe pediu-me, antes de morrer, para o guardar para o resto da minha vida e não contar nem mostrar a ninguém. Eu prometi-lhe que o guardaria, e que quando chegasse o dia de partir deste mundo, ofereceria a uma de vocês as duas.

- E agora? O que fazemos? A casa incendiou-se, nunca vamos encontrar o colar. – Disse Mickael preocupado.

- E mesmo que encontrássemos não podíamos entrega-lo a uns bandidos! Aquele colar é sentimental para a Constança! – Disse Alice para Mickael.
De repente Constança enterrou a cabeça nas suas mãos e desatou a chorar.

- Mãe… então? Tem calma, nós não vamos dar o colar a ninguém. Aqueles bandidos um dia vão desistir de o procurar. – Disse eu, tentando acalmá-la.
- Não é isso… esta conversa fez-me lembrar a morte dos meus pais… Também foi por causa desse maldito colar!

- Foi por causa disso que os nossos avós morreram? – Perguntei sem acreditar.

- Sim… Foi uma tragédia! O meu pai descobriu esse colar escondido numa caixa e ficou zangado pela minha mãe nunca lhe ter dito nada… Nós eramos muito pobres, e o meu pai culpou a minha mãe… Disse-lhe que vivemos sempre naquela miséria por causa dela. Mas ela não podia quebrar a promessa que fês aos pais dela. A mesma promessa que eu fiz à minha mãe… – Fez uma breve pausa para limpar as lágrimas e prosseguiu. – Agora que penso a história da nossa família é marcada de tragédias atrás de tragédias. E tudo devido à porcaria desse colar! O melhor é mesmo entregar-lhes.

- Mas mãe… Estás a querer dizer que… que o nosso avô, matou a nossa avó? – Perguntou Nicole aterrorizada.

Constança recomeçou novamente a chorar.

- Sim filha… - Disse ela. - O meu pai matou a minha mãe. Foi um acidente, mas se aquele colar não existisse nada daquilo tinha acontecido… Assisti a tudo isto, escondida, e quando o meu pai percebeu isso o sentimento de culpa preencheu-o por completo e decidiu suicidar-se.

O silencio do choque desta notícia fez estremecer o ambiente.

- Não posso acreditar. – Falou Nicole a tremer. – Então porquê que não destruíste logo esse colar, mãe? Devias tê-lo destruído, ou vendido! Não precisamos dele para nada! 

- A minha mãe morreu para salvar o colar, se eu o destruísse ela teria morrido em vão…

O silêncio ecoou novamente por toda a casa durante alguns minutos que pareceram horas. Apenas se ouviam os soluços do choro mudo incontrolável de Constança. Tentava conter-se para que o nosso choque perante tudo aquilo não fosse tanto.

- Mãe, nós vamos andando está bem? – Disse eu com delicadeza. – É melhor voltarmos aqui mais tarde para falarmos sobre isto com mais calma. Se calhar nem devíamos ter vindo… Se soubesse que te íamos por nesse estado…

- Não, não! Fizeram muito bem em vir cá vir. Custou-me muito falar sobre tudo isto, mas de qualquer forma, não iria aguentar continuar a guardar tudo isto só para mim por muito mais tempo… Mais tarde ou mais cedo teria que vos dizer tudo.

- Bom, ainda bem então. – Disse Nicole.

- E sobre os bandidos… Devíamos tentar encontrar o colar no local do incendio da nossa antiga casa e se não o encontrássemos… talvez o melhor fosse mudar-nos todos para bem longe daqui. Todos nós. Talvez pudéssemos aproveitar a minha antiga casa de Lisboa.

- Por mim tudo bem. – Assenti.

- Constança, muito obrigada, mas acho que no meu caso não preciso de ir viver junto de vocês. Não quero incomodar, e visto que não sou da família, eles não me devem fazer mal nenhum.

- Não, o melhor é virem todos. – Insistiu ela – Se eles forem psicopatas por esta altura já sabem onde é que todos nós moramos, incluindo os amigos e conhecidos. Não podemos arriscar que aconteça alguma coisa a alguém que não tenha culpa nenhuma.

- Esta bem… - Aceitou Alice. – Então amanha bem cedo reunimo-nos nas ruínas da antiga casa para procurar o colar.

- Mesmo bem cedo, para que não sejamos vistos por ninguém. Temos que ter muito cuidado!

Com isto, despedimo-nos de Constança e regressamos a casa, preparados mentalmente para o pior.

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