sábado, 24 de outubro de 2015

Capítulo 27 - Surreal

Mal saímos do hospital dirigimo-nos para casa de Matias. Só queríamos aproveitar cada segundo juntos. No entanto eu sentia uma enorme curiosidade em saber como todos os outros estavam. De certeza que em 10 anos muita coisa tinha mudado.

- Ainda bem que perguntaste… Quase já me esquecia disso. Pedi aos outros que não te viessem ver hoje pois muita coisa mudou e podia ser demasiado confuso para ti…

- Mais confusa do que me senti quando acordei não posso ficar. Agora estou bem. Conta-me tudo! - Sentei-me no sofá.

- Bem, tu é que pediste. Vou começar pelo Mickael. Espero que não seja chocante, mas ele está neste momento casado com a tua irmã.

Entalei-me com o ar que inspirara demasiado rápido.

- Estás a falar a sério?

- Estás-me a ver a rir? – Brincou.

- Não pode ser. – Soltei uma gargalhada. – Nunca imaginei isso. E a Alice? De certeza que não está sozinha…

- A Alice… namora com o teu primo Rúben. Apaixonaram-se durante os dias em que vocês foram todos trabalhar na Roulotte, lembraste? – Assinalei que sim com a cabeça. Estava boquiaberta. – Enquanto aos teus pais... Continuaram com as suas vidas separadamente. O teu pai encontrou alguém que o amava verdadeiramente, vivendo com ela numa nova casa, e a tua mãe diz que apenas sozinha consegue ser feliz. No entanto não continua a viver na antiga casa onde tu moraste. Essa incendiou-se devido a um acidente e por isso mudou-se para uma pequena casa em Coimbra... – Avaliou a minha expressão facial. – O que foi?

- Isso que acabaste de dizer aconteceu no meu suposto sonho.

- A sério?

- Sim. Cada vez acho isto mais esquisito.

- Talvez não seja assim tão esquisito. Durante o tempo em que estiveste em coma eu visitei-te todos os dias para falar contigo como se me pudesses ouvir… Talvez me tenhas ouvido mesmo, mas interpretando à tua maneira, em forma de sonhos. Não digo que isso seja impossível…

- Será? Mas o que me falavas?

- Dizia-te tudo o que sentia. Exatamente tudo. E contava-te algumas coisas que iam acontecendo, assim como o incendio, as vidas separadas dos teus pais, uns piqueniques agradáveis que fizemos com a Alice, o Mickael e a tua família… Com o teu acidente todos nos unimos.

- Só não percebi a parte do rapto…

- Talvez a tua imaginação seja muito fértil, porque eu nunca deixaria uma coisa dessas acontecer-te.

- Isto é surreal… - Sorri. – Ainda não consigo acreditar que tenho 28 anos. Tenho idade para me casar e ter filhos. – Olhei para ele pensando melhor no que acabara de dizer.

- Por mim podíamos começar já a praticar. – Beijou-me atrevidamente.

Desatei às gargalhadas sem conseguir responder aos beijos.

- Quantos queres? – Questionei curiosa.

- Podemos ter mil se quiseres! – Retirou algo do bolso.

- O que é isso?

- Adivinha.

- É o que estou a pensar? – As lágrimas de emoção regressaram.

- Sim, é. - Mostrou-mo. Era o anel mais lindo que alguma vez vira. – Mesmo não sabendo se sobreviverias comprei-te na esperança deste momento chegar!

- Amo-te tanto! – Abracei-o com todas as minhas forças.

- Não precisas de me sufocar! – Brincou. – Podia ter-to mostrado numa ocasião muito mais vergonhosa do que esta.

- Não sejas parvo. – Limpei as lágrimas. – E agora, o que vamos fazer até ao casamento?

- Tudo aquilo que quiseres. E já que falamos em filhos, quero que saibas que sou todo teu!


- Quero ir para a praia! – Desatei a rir.























Fim









domingo, 20 de setembro de 2015

Capítulo 26 – Sonho e realidade

Ficou decidido no dia seguinte irmos definitivamente para Lisboa. Estava já tudo preparado mas a noite na praia com o Matias não podia deixar de acontecer. Queria mesmo que as memorias que aqueles locais me transmitiam, ficassem bem guardadas.

Tínhamos combinado encontrarmo-nos lá, como se fosse o primeiro encontro de duas crianças que se sentiam apaixonadas pela primeira vez na vida. Eu ficara de levar o jantar para nós os dois e ele de levar o rádio para ouvirmos música.

Fui a primeira a chegar. Sentia-me ansiosa e insegura, como se fosse dar o primeiro beijo. Pousei as minhas coisas bem perto do mar, estendi a toalha e sentei-me a sentir as ondas do mar a virem de encontro aos meus pés.

Tudo aquilo era estranho. Estive longe daquelas coisas durante dias e pareceu que estivera longe de tudo durante anos. Pelo menos com isso aprendera a valorizar os pequenos momentos da vida. São esses que nos fazem ver a beleza do mundo que por vezes nos parece horrível, que nos fazem saber quem nós somos e que nos faz sentir o infinito do universo em nós próprios. Não há qualquer forma de alguém saber o que nos espera do futuro por isso devemos viver o presente ao máximo. Eu vivia sem valorizar o que me rodeava e de um instante para o outro toda a minha vida se virou do avesso. Agora tudo o que fizer parte da minha vida fará parte dela para sempre. Agora observo cada gota de água, sinto cada toque do vento, ouço cada som à minha volta e saboreio cada pedaço de vida até se esgotar o sabor.

Surpreendia-me a demora do Matias pois ele parecia tão entusiasmado quanto eu na última vez que nos faláramos. Talvez com a ansiedade que sentia me tivesse adiantado demais.

Os últimos raios de sol afundavam-se no mar. Era um pôr-do-sol que adoraria assistir ao lado dele. Olhei para as horas e já passava bastante da hora combinada. Olhei em redor, e nada. Tentei então telefonar-lhe mas não atendia. Fiquei de repente preocupada. Ele nunca se atrasava um minuto portanto só podia ter acontecido algum imprevisto. Deixei tudo como estava e dirigi-me a casa dele. O céu estava agora completamente escuro e nenhuma sombra rondava nas ruas, nenhum movimento, nenhuma luz. Ninguém. Já perto de casa dele, alguém me telefonava. Era ele. Atendi inquietada.

- Estou, Matias? O que se passa?

Apenas silencio se ouviu. Não percebia.

- Porque não apareceste? Matias?!

Novamente silêncio.

- Responde! Se é uma brincadeira para já com isso!

- O Matias está ocupado. – Era a voz do Cruner.

O meu coração acelerou e esforcei-me por ouvir algum outro som. A dor fez-me começar a chorar.

- Por favor não lhe faças mal.

- Relaxa. Estou só a ensinar-lhe que não deve ajudar prisioneiras minhas a fugir.

O meu corpo estremeceu.

- Por favor… Imploro! – Olhei em redor. – Onde vocês estão? Eu posso ir ter contigo e podes fazer-me tudo o que quiseres… Posso voltar para a cave o tempo que quiseres…

- Quero que voltes para a praia e fiques lá bem quietinha. – Ouvi o som de um copo a cair.

Fiquei alguns segundos calada, tentando ouvir algo. Depois a chamada caiu.

O copo que ouvira a cair ao chão fez-me perceber que talvez o Cruner tivesse perseguido o Matias até casa e talvez estivesse lá com ele agora.
Mantive-me abaixada quando me aproximei da casa dele para que não me vissem através das janelas. Caminhei até à porta das traseiras. Abri-a o mais silenciosamente que consegui e entrei ainda abaixada. Ouvi de imediato a voz do Cruner, juntamente com uns grunhidos. Espreitei para a cozinha e lá não estava ninguém. As gavetas e os armários estavam todos abertos. Aproximei-me e estremeci ao observar a gaveta das facas. Avancei, aproximando-me do quarto, ouvindo a  voz do Cruner cada vez mais alto. Não percebia o que dizia, parecia que falava para si próprio. Despercebida calquei o comando da televisão e esta ligou-se. Num ápice fugi para a casa de banho e permaneci em silêncio. Por baixo da porta vi a sombra de Cruner a passar, vagarosamente. Tentei não fazer barulho ao respirar, pois entre o silêncio total, até o orvalho da noite se ouvia cair. Espreitei e vi que ele, não vendo ninguém na sala, dirigia-se para a cozinha. Aproveitei esse instante e corri para o quarto encontrando o Matias encolhido na cama, de braços e pernas amarradas e com a boca tapada por uma camisola violentamente engelhada. Enquanto o desamarrava ele apontou, através do olhar, para a mesinha de cabeceira. Por cima dela não havia nada para além de um relógio antigo. Abri a sua gaveta e vi uma arma. Olhei surpreendida para Matias quando o Cruner entrou no quarto. Em reação, peguei na arma e disparei. No entanto, sendo a primeira vez que pegara numa arma, acertei por sorte no candeeiro e não no Matias. De imediato Cruner agarrou-me a arma, tentando direciona-la para Matias. Este conseguira retirar o pano da boca e tentava agora soltar-se das cordas para me ajudar.

- Mandei-te para a praia para te levarem para a cave. Se preferes morrer, assim será...

Arrancou-me a arma da mão e empurrou-me para o chão.

- …mas primeiro irás vê-lo morrer para garantir que não serás novamente ajudada.

Apontou a arma para Matias e eu voei para o colo deste ao mesmo tempo que senti uma enorme e sufocante dor no peito. Ouvi-o a berrar o meu nome, depois tudo ficou mudo e flutuante. Senti-me como uma pena a ser levada pela brisa suave do mar. Não sabia onde estava mas sentia-me desconfortável pois estava numa situação que desconhecia. Descobri depois que estava a voar num lugar que nunca antes vira até encontrar o meu próprio corpo nos braços de Matias, derramado de sangue. Estava a observar-me a mim mesma numa perspetiva humanamente impossível. Depois o Matias, assim como tudo à volta do meu corpo, desapareceu e o cenário mudou. De repente o meu corpo não estava mais na casa de Matias, mas sim numa estrada de alcatrão envolto de uma multidão assustada e curiosa por perceber o que acontecera. Mas mais assustada e curiosa estava eu pois não percebia o que se passava. Lembrei-me então do que se tratava. Era o cenário de quando eu, Alice, Nicole e os outros nossos amigos, fomos atropelados pelo enorme camião que me derrubou a memória. Aos poucos senti o meu corpo a afastar-se de onde eu o observava. Ou talvez fosse eu que estaria involuntariamente a ser afastada dele. Aquele ambiente estranho em que estava foi escurecendo sem eu quase nem reparar até se tornar num tom de cor completamente preto, exatamente como se estivesse dentro de um quarto fechado sem luzes nem janelas. Tentei procurar alguma espécie de saída. Parecia um jogo, mas não tão divertido como um jogo. Era aterrorizante.


No meio da escuridão surgiu uma pequena luz distante que parecia chamar por mim. Voei de encontro a ela e esta aos poucos foi ficando maior e maior. No entanto algo me impedia de continuar. Senti uma dor semelhante a um susto e senti então que estava viva. Percebi que conseguia respirar ao mesmo tempo que senti o meu coração a bater dentro de mim de forma acelerada. Percebi que a escuridão que via era, desta vez, por ter os olhos fechados. Podia abri-los, no entanto tinha medo de o fazer. Onde será que acordaria? No céu? No inferno? Em casa do Matias? Estaria de volta ao mesmo corpo que tinha? O que raio estava a acontecer?

Senti a respiração compulsiva de uma outra pessoa. Saber que não estava ali sozinha reconfortou-me e deu-me coragem para abrir os olhos: estava no meu corpo, deitada numa cama de um hospital e ao meu lado estava Matias a abraçar-me com os seus olhos alagados em lágrimas. Olhei-o melhor. O seu aspeto estava diferente. Quase não parecia o mesmo.

- Sei o que estás a pensar. – Disse Matias. – Pedi aos médicos para ser eu a dizer-te mas suponho que ficarás igualmente confusa.

Observei-o atentamente.

- Talvez seja melhor descansares primeiro.

- Não... - Custava--me imenso falar.

Olhei para o reflexo de mim mesma no vidro da porta. Também eu estava diferente. Parecia mais velha, quase outra pessoa. Tentei levantar-me.

- Calma...

- Diz-me, o que está a acontecer?

- Apenas ouve e a seguir vou-te deixar a refletir. Só tens que acreditar no que te digo, está bem?

Acenei enquanto ele me acariciou.

- Luciana, estiveste em coma durante 10 anos. Tens 28 anos neste momento.

- O quê? – Se não fosse ele a dizer-me não acreditava mesmo. – Mas... eu lembro-me... Eu... O Cruner estava...

Beijou-me para que parasse de falar.

- Que Cruner? - Suspirou. - Apenas tenta-te lembrar do que verdadeiramente aconteceu. 

Interrompeu-me mal tentei continuar a falar.

- Precisas de repousar. É perfeitamente normal que estejas confusa. Provavelmente tiveste vários sonhos que podes pensar que foram reais…

Por favor… 

O pânico preenchia-me. Aquilo não parecia real. Será que eu mesma algum dia fui real? O que sou eu? Não entendo a minha identidade.

- Amo-te.  – Beijou-me a testa. - É a única coisa que preciso que saibas.

Saiu do quarto de hospital. Tentei interpretar as palavras dele mas nada fazia sentido. Como assim ele não sabe quem é o Cruner? Como assim passaram 10 anos?

Ainda duvidava se estaria mesmo viva. Senti aquele tiro no meu peito de uma forma tão real que é difícil imaginar que tenha sido imaginação minha. Se for verdade que nada daquilo aconteceu, então como poderei saber se não continuo ainda a sonhar?

Horas depois de repouso e pensamentos confusos, Matias regressou ao quarto.

- Estás mais calma? – Sentou-se ao meu lado.

- Não consigo chegar lá… Preciso que me digas como vim aqui parar. Se isto é real, diz-me o que raio aconteceu.

- Vamos começar com calma. Lembraste dos tempos em que vivias comigo, em minha casa?

- Sim. Devido à zanga com os meus pais aproximei-me de ti e...

- Isso mesmo. E lembraste do dia em que me disseste que sentias saudades das tuas velhas amizades, e que desejavas revê-los? - Sentou-se junto de mim e agora massajava-me a cabeça enquanto falava.

- Sim, perfeitamente. Decidimos ir ao cinema… Quando fomos atropeladas. Depois acordei no hospital como estou agora, mas olhei para ti e não te reconheci, assim como não me lembrava de grande parte da minha vida.

Matias observou-me pasmado.

- Não. Isso que falaste depois do acidente não aconteceu. Antes tivesse… Era mil vezes preferível não te lembrares de mim do que me teres deixado durante tanto tempo a sofrer, sem saber quando irias acordar ou morrer pois tanto uma coisa como a outra podia acontecer a qualquer instante… - Os seus olhos lacrimejaram de dor. – Não imaginas o quanto sofri Luciana! Pensei que não sobrevirias.

Olhei-o sem palavras.

- Mas Matias… Como é possível? Tu podes não acreditar mas eu juro-te que o sonho foi tão real como a realidade que estou a viver agora…

- Se queres que te diga, nem eu sei se morri durante estes anos… Talvez estejamos os dois mortos.

- Sonho ou realidade, estamos juntos!

Beijamo-nos.

quarta-feira, 9 de setembro de 2015

Capítulo 25 – Regresso da Paixão

Desajeitados, caímos entre a folhagem.

- Tu és completamente doido dessa cabeça! Como decidiste fazer isto? Podíamos ter morrido os dois!

- O que importa é que isso não aconteceu. – Riu-se.

- Conta lá, como soubeste que estava aqui?

- Naquela noite vi-te a procurares-me. Estava perto da floresta onde te raptaram e estava mesmo determinado ao suicídio. Sabia que a minha vida não ia fazer sentido sem ti. Depois ouvi a tua voz e não quis acreditar que me tinhas vindo procurar àquela hora da noite. Corri ao teu encontro e vi, de longe, a levarem o teu corpo. Eram muitos homens e estavam armados por isso não podia fazer nada. Então persegui-vos. Percebi que seria muito difícil conseguir entrar no edifício sem nenhum daqueles homens me virem por isso comecei a pensar num plano…

- Sabes que lá dentro tive muitas horas a olhar para o vazio, sem poder fazer nada e isso fez-me pensar em muitas coisas. – Fiz uma pausa. – Ter estado lá dentro foi horrível, mas graças a isto consegui recuperar grande parte da minha memória e… - Olhei os seus olhos grandes e verdes-acinzentados como se observa-se diretamente a sua alma - … e percebi que te amo como nunca amara nada nem ninguém. – Engoli em seco. – Lembrei-me de todos os momentos. De como nos conhecemos, das horas seguidas que conversamos de forma inseparável… Das tuas surpresas ridículas mas encantadoras… – Soltamos os dois uma gargalhada. – Lembro-me de todos os pormenores sobre ti e cada vez que pensava que te tinhas suicidado por minha causa, ficava vazia e nem desejava sair mais da cave…

Tapou-me a boca impedindo-me de continuar.

- Já percebi. – Disse a sorrir.

Nunca os seus olhos refletiram tanta felicidade como naquele momento. E através dos seus, vi o reflexo dos meus. Beijamo-nos apaixonadamente sem sequer sentir as silvas que nos picavam no chão. Rebolamos sem o beijo se interromper um segundo. Só queria que o tempo parasse naquele momento. No entanto lembrei-me, num susto, da minha família.



- Rápido temos que ir! A minha família, eles vão mata-los! – Levantei-me.

- Calma. De que estás a falar? – Agarrou-me preocupado.

- Eles têm que saber que já estou bem para não entregarem o colar. Mal o entreguem o Cruner mata-os!

- Que colar? Tás a falar de quê?

- Um colar muito valioso… Foi por ele que me raptaram... É uma longa história. Rápido! – Desatamos a correr. – Que horas são?

- Não tenho aqui horas.

Aproximamo-nos do portão do edifício escondidos atrás das árvores. O silêncio pairava e não havia sinais de ninguém.

- Luciana, é muito perigoso estarmos aqui. Eles estão neste momento fulos pela tua fuga e estão à nossa procura por todo o lado. Sabes o que acontece se nos apanham, não sabes?

- Sei, mais do que ninguém. Mas não posso deixar a minha família morrer.

- Espera, anda cá. – Agarrou-me.

- Subimos a esta árvore e escondemo-nos entre as folhas.

Ajudamo-nos um ao outro a subir e permanecemos a observar atentamente todo aquele espaço.

- Não sei onde os meus pais iriam se encontrar com o Cruner mas sei que era nesta floresta. – Sussurrei enquanto ele me observava como se não me estivesse ouvir.

- Luciana… Desculpa fazer esta pergunta agora. Mas gostava de saber o que sentes agora pelo Mickael.

Observei-o hesitante.

- Não sei bem. Mas sei que não o amo como te amo a ti. Também me lembrei do meu passado com ele e sei que nem sempre ele me tratou bem como me tratou nos últimos tempos. Sei que ele não foi verdadeiro comigo e aproveitou a minha perda de memória para enterrar os erros dele e poder ser feliz comigo. No entanto não posso negar que os momentos que passei com ele foram bons e sinceros da parte dele...

- Contínuas duvidosa?

- Não! Não tenho quaisqueres dúvidas de que és tu quem eu quero! Só tenho dúvidas do que farei com ele… Não o quero magoar.

- Compreendo.

Ao longe vi Mickael, com uma caixa na mão.

- Olha. – Apontei. – Pensava que vinham os meus pais…

- Eu vou avisa-lo. Fica aqui.

- Não Matias. Eu Vou. Este problema é meu, não tens que te arriscar a nada.

- Se é teu, também é meu. – Desceu a árvore.

Vi-o a correr em direção a Mickael. Olhei em redor e vi uns seis homens de Cruner a aproximar-se do local onde eles estavam e o meu nervosismo explodiu. Matias tinha poucos segundos para o avisar e esconderem-se. Vi-o a aproximar-se de Mickael e a falar-lhe agitadamente mas Mickael não se mexia. Não acreditava em Matias e eu devia ter previsto que isso acontecesse. Eles odeiam-se!
Não havia tempo para pensar no que fazer por isso agi de forma inconsciente. Atirei-me da árvore em trambulhão e corri o mais que pude até eles. Chegando ao pé dos dois, atirei-me para cima de Mickael, abraçando-o e deixando-o completamente surpreendido e confuso.

- Estou aqui Mickael!

- Como…

- Não há tempo. Corram. Eles vêm aí!

Puxei Mickael e começamos a correr por entre as árvores mas já os homens nos tinham visto. Corriam agora atrás de nós disparando tiros na nossa direção de forma assustadora. Não havia como podermos desviar-nos deles ou evita-los e eu fora a primeira a ser atingida. Senti uma enorme dor, como se algum animal feroz me tivesse arrancado um pedaço de carne da perna. Ficando para trás, gritei aos dois que corressem mas estes ignoraram e pegaram em mim pelos braços.

- Mickael deixa a caixa! Deixa-a pelo caminho. Pode ser que eles parem. – Gritei.

- Tens a cert...

- Faz o que eu digo!

Sem parar de correr, Mickael assim o fez, atirando a caixa para o local onde os homens vinham. Estes viram-na cair no chão, um deles apanhou e continuaram a correr e a disparar tiros, sem qualquer tipo de misericórdia por nós.

Apesar de os vermos cada vez mais perto de nós, havia esperança. Se conseguíssemos sair da floresta eles deixariam de correr atrás de nós devido às pessoas com as quais nos iríamos de certeza cruzar.

No entanto, sem folego e com dores enormes na perna, não aguentava continuar mais. Mickael e Matias arrastavam-me até que alcançamos a estrada e atiramo-nos para ela como se fosse a nossa grande salvação. Aqui já existiam habitações por isso ficamos a observar, impunes, aquilo que iria acontecer a seguir.

Alegremente vimos os homens a abrandarem até pararem totalmente e investigarem a caixa.

Sorrimos de alívio.

No entanto quando olhei novamente vi aquilo que não esperava. Ao longe, o Cruner olhava-me nos olhos apontando a arma a Jayden.

- NÃO! – Berrei ao mesmo tempo que o tiro se ouviu e Jayden caiu inútil no chão.

Matias e Mickael olharam-me sem perceber quando desatei a chorar de raiva. Foquei-os e expliquei a injustiça daquele acontecimento.

- Não imaginam o quanto me apetece fazer-lhe o mesmo.

- Calma. – Matias abraçou-me.

- Bem. – Disse Mickael levantando-se. - Acho que estou aqui a mais.

- Espera. – Agarrei-o pela manga da camisola. - Eu voltei para ele mas não quero deixar de falar contigo. E não olhes para mim dessa maneira porque a culpa disto não é minha. Tu sempre soubeste do quanto eu o amei e mesmo assim quiseste fazer-me gostar de ti…

- Eu sei. Devia ter-me preparado de que um dia a tua memória regressaria. Estava cego. Queria ter-te só para mim, nem que fosse durante pouco tempo… Ainda bem que estás salva. Adeus.

Com isto foi-se embora e apareceu toda a minha família.

- Oh filha! – Exclamou Constança.

Fui abraçada por Nicole e pela minha mãe.

– O que te fizeram lá dentro? – Interrogou Nicole. - Estás num estado terrível.

Olharam apavoradas a para a minha perna ensanguentada.

– O que te aconteceu à perna?

- Calma mãe…

- Tive tantas saudades tuas! – Alice chorava por me ver.

- Eu também. – Abracei-a - Não parei de pensar em vocês um único minuto.


Com isto levaram-me ao hospital.

No dia seguinte estava já quase como nova. Por sorte o tiro não me fez grandes danos. Pelo menos fisicamente, porque psicologicamente ainda a violência daqueles dias me tinham bastante assustada. Para além disso não tinha ainda a certeza se deveríamos estar felizes. Com uma fuga destas de certeza que Cruner não iria ficar-se por ali. Provavelmente isto apenas serviu para o provocar e lhe fazer mais sede em provocar mortes.

Exigi à minha mãe que partíssemos para Lisboa o quanto antes e sem deixar rastos, para podermos finalmente viver em paz, e todos concordaram. Mas antes disso gostaria de me despedir daquele lugar. Porque apesar de terror, aquele foi também um lugar de muitas alegrias e loucuras. Já perdera a memória de tudo aquilo uma vez, e desta vez desejava deixar todos os momentos que ali passara, bem guardados comigo.

Chamei o Matias e este logo me deu atenção.

- O que desejas, minha relíquia?

- Não sejas parvo! – Ri-me. - Quero ir para a praia. Contigo. Tenho tantas saudades!

- É esse o teu único desejo?

- Claro que não. Tu sabes bem o que desejo. – Beijei-o e este olhou-me atrevidamente.

- Nesse caso hoje iremos ficar na praia toda a noite!


quinta-feira, 20 de agosto de 2015

Capítulo 24 – Esperança

O prazo de Cruner para a procura do colar esgotava-se e ainda nem sinais dele tinham sido encontrados na velha e destruída casa. Decidimos revelar a existência do colar ao resto da família e juntaram-se para nos ajudar o pai, os tios e os primos de Luciana, assim como elementos da família do Mickael e da minha. No entanto toda esta ajuda parecia pouca. O maldito colar não aparecia e com isto os mais pessimistas começavam aos poucos a desistir. Em objeção, Mickael ficava todo o dia sem desviar os olhos da casa uma única vez. Não desconfio que, se o permitíssemos, ficaria também toda a noite a procurar. E foi graças a esta enorme força interior de Mickael que a nossa esperança regressou: quando o sol começava já a esconder-se entre o horizonte de arvoredos e o dia de entrega do colar se aproximava, Mickael chamou-nos a todos em euforia – acabara de encontrar um conjunto de minúsculos diamantes que obviamente pertenciam ao colar.

Todos se deslocaram até ao local e de seguida as atenções desviaram-se para Constança.

- Sim. Sem dúvida que pertence ao colar!

No entanto esta descoberta podia significar não só que o colar estava próximo, como também que este estava destruído. Dúvidas e receios se instalaram entre todos mas a força pela procura aumentara significativamente.

Horas depois, já em plena escuridão da noite e com a ajuda apenas das luzes das lanternas, encontraram, finalmente, o valioso colar. Aparentemente estava como novo, mas Constança, que mais do que ninguém tão bem o conhecia, notou-o desfigurado do seu estado original.

Os que nunca o tinham visto verificaram de perto e embora os mais pobres ou ambiciosos desejassem interiormente vende-lo, todos concordaram que a vida de Luciana era mais valiosa.

Com isto o problema que se seguiu, foi decidir quem iria no dia seguinte à meia-noite para a floresta, encontrar-se cara-a-cara com o Cruner para lhe entregar o colar. Foi um problema aparentemente complicado que teve fácil resolução – adivinharam que Mickael gostaria de ser o herói da sua amada e o primeiro a voltar a vê-la e este aceitou sem quais queres dúvidas.


             *                              *                              *                               *       


Acordei com um raio de sol a clarear-me as pálpebras dos olhos e dei por mim desamarrada. Recordei o que se sucedera antes de ter ficado inconsciente e senti uma enorme raiva.

Olhei para a janela. O tamanho dela, embora pequeno, dava para eu fugir se não fosse a grade de três ferros que a protegia. Imaginei que se conseguisse retirar o ferro do meio e afastar os outros dois, conseguiria fugir, e não hesitei em experimentar fazê-lo. Sabia que para retirar a do meio iria precisar de algum instrumento, mas talvez conseguisse entortar as outras duas com a força das pernas. Entretanto, ao tentar, dei de caras com um dos homens de Cruner a olhar para mim, do outro lado da janela. Riu-se para mim maleficamente e virou costas. Arrependi-me de imediato. Que estupidez a minha!

Minutos depois Jayden entrou na cave com uma corda na mão e, evitando trocas de olhares comigo, aproximou-se.

- Tenho de te amarrar. – Agarrou-me gentilmente os braços.

- Agora já falas comigo?

- Não temos mais nada para falar para além disto. Mas se quiseres posso começar a amarrar-te sem te avisar.

Desta vez sentira-me ofendida.

- O que se passa contigo? Não pareces o mesmo que me pediu ajuda para fugirmos daqui. Pensei que fossemos amigos!

- Luciana, esquece isso. Não há qualquer forma de conseguirmos sair daqui vivos. Eles estão por todo lado. Não há nada a fazer. Agora deixa-me amarrar-te, a não ser que queiras que te magoe.

- Agora és como os outros? Também me bates?

- Tu é que estás a pedir.

Empurrou-me contra a parede e amarrou-me os braços atrás das costas. De seguida amarrou as cordas dos meus pulsos às grades da janela evitando, mais uma vez, o contacto com os meus olhos e saindo sem dizer mais nada.

Não percebia a atitude dele. O Cruner só lhe podia ter feito uma lavagem ao cérebro, porque aquele não era o Jayden que conhecia. Ou que pensava conhecer. No entanto aquilo que ele dizia era difícil de desmentir - parecia completamente impossível qualquer tipo de fuga.

Sabia que aquele era o dia dos meus pais entregarem o colar ou eu morrer, ou ambas as coisas, e o meu medo aumentava a cada segundo. Não sabia se por "gostar" de mim o Cruner me deixaria escapar viva, a mim e à minha família, em troca do colar, ou se daquele momento a umas horas iria ver a minha família a morrer. Se isso fosse acontecer preferia, pelo menos, que me matassem aqui dentro, sem ninguém me ver a morrer nem eu ver ninguém a morrer por mim.

Dentro destes pensamentos as horas foram passando até que anoiteceu.

De repente senti algo nos meus pulsos, a mexer-se. Tentei olhar para trás e um par de mãos reviraram-me a cabeça de novo para a frente, assustando-me. Com isto alguém me sussurrou ao ouvido: «Calma. Não te mexas… não fales.» Não fazia a mínima ideia quem era, mas tentava ajudar-me. Desamarrou-me e sussurrou: «Não digas nada quando me vires!» Lentamente, virei-me para trás e vi Matias. Todos os meus sentidos se baralharam e tentei controlar-me. Quase não acreditava no que via. Permaneci calada enquanto ele, completamente calmo, retirava os ferros com instrumentos previamente pensados. Mal acabou observou a cave por dentro.

- Não acredito que estiveste três dias dentro dessa coisa.

Agarrou-me a mão e estremeci, como se só agora que senti a pele dele pudesse acreditar verdadeiramente de que ele é real e que aquilo está a acontecer. Foquei o lado de fora e não estava ninguém. Sabia que não iria demorar muito para sermos apanhados. Saí da cave e mal pousei os pés na terra, desatamos a correr. Uma enorme escadaria estava à nossa frente e como não teria forças suficientes para a subir, pegou em mim. À nossa frente apareceram imensos corredores feitos de plantas - parecia um labirinto. Avançamos pelo caminho que provavelmente Matias tinha percorrido até me ter encontrado na cave. Ouvíamos passos por todo o lado. Sabia que eram os homens de Cruner pois estes andavam constantemente a vigiar todo o redor do edifício. Desviamo-nos para um campo recheado de árvores velhas e escondemo-nos entre as plantas.

Continuou a ser apenas ele a falar.

- Parece que já estamos livres, mas à volta de tudo isto existem muros bem grossos a fechar tudo. Para conseguir entrar tive que escavar um buraco por baixo deles e para isso tive que planear muito bem uma forma de fazer isso sem ser apanhado. Assim como tive que planear que tipo de instrumentos poderia ter que usar – Apontou para a ferramenta que usara para retirar a grade, que eu desconhecia – Agora temos que nos dirigir ao buraco que fiz, mas neste momento já o devem ter visto e já devem estar todos à nossa procura…

- Como soubeste que fora raptada? – Falei finalmente. – Pensei que…

- Luciana, depois explico-te tudo… Se sairmos daqui vivos.

Ele tinha razão. Observamos à nossa volta e vimos, do outro lado do campo, um pequeno portão que nos levava a mais corredores como aquele que nos levou até ali. Dirigimos essa direção, percorremos esses corredores e vimos, num deles o Karlles, a correr de costas viradas para nós, na direção de um outro homem. Seguimos uma outra direção, cada vez mais nervosos.

- Não podemos sair pelo buraco que fiz. – Divulgou Matias.

Decidimos procurar o muro e fazer um novo buraco num sítio escondido para que ninguém nos apanhasse enquanto escavávamos. Minutos depois, a correr e a esgueirar-nos entre os vários homens que nos procuravam, encontramos o grandioso muro e suspiramos de alívio. Escavamos furiosamente o buraco.

Tudo aquilo que acontecia naquele momento me parecia completamente irreal pois dos três dias que ali estivera nunca imaginara uma fuga como aquela. Nunca imaginei que fosse o Matias a vir-me ajudar e nunca pensei que as defesas de Cruner contra as fugas dos seus prisioneiros fossem assim.

Pareceu uma eternidade até termos conseguido escavar a maior parte do buraco, Matias exigiu que eu fosse a primeira a avançar. Enquanto me enfiava no buraco escavei melhor o pouco que faltava e a irrealidade do momento aumentou mais. Não acreditava que estava livre. Ajudei o Matias a passar para o meu lado e abracei-o. Rimo-nos de felicidade e corremos entre a floresta para bem longe daquele lugar.


quinta-feira, 6 de agosto de 2015

Capítulo 23 - Sofrimento

Corremos até ao fundo do corredor, quando ouvimos as vozes deles que ecoavam por todo o edifício. Paramos e o Jayden colocou o braço à minha frente, impedindo-me que avançasse. Depois sussurrou:

- Já devíamos estar na cave. Eles estão por perto. Ninguém nos pode ver nem ouvir. Vamos. Segue-me e faz tudo como eu fizer.

Avançamos em frente, abaixados e em passos vagarosos e cuidadosos. As vozes deles ouviam-se num volume cada vez mais elevado, parecia que estávamos a caminhar em direção a eles, e isso preocupava-me. De repente Jayden parou de caminhar e abaixou-se até ao chão. Repeti-o assustada e segundos depois vimos um dos homens a atravessar a ultima porta do corredor, a porta que dava para a cave.
Jayden olhou para mim, completamente pálido. Se o homem entrasse na cave e visse que não estávamos lá, avisaria imediatamente o Cruner, e depois de nos apanharem, matar-nos-iam de certeza.

Continuamos no mesmo sítio, sem conseguirmos pensar e muito menos reagir, até que ouvimos o rugido de uma porta, aparentemente, de grandes dimensões, a abrir-se e a voz do homem que entrara na cave dizendo que lá não estava ninguém.

O meu coração saltou e os seus batimentos aceleraram de forma dolorosa, como sequentes marteladas no meu peito. Olhei para a expressão apavorada na face do Jayden e percebi que o seu interior se encontrava no mesmo estado que o meu. Não sabia o que fazer e os meus pensamentos imploravam que Jayden me revelasse uma solução. E foi então que ele se levantou e me agarrou pelo braço. Corremos na direção oposta da cave onde deveríamos estar naquele momento, descemos uma efémera escadaria e paramos em frente de uma porta. Jayden retirou atabalhoadamente do seu bolso um enorme conjunto de chaves e abriu a porta. Do outro lado estava um imenso quarto assustador preenchido de objetos de tortura. Parecia que tínhamos acabado de entrar num quarto de um filme de terror onde durante anos se guardaram todos os imagináveis tipos de objetos que pudessem causar sofrimento. De rompante, Jayden pegou numa enorme faca afiada que lá se encontrava, fazendo-me recuar sem o compreender. Por pequenos instantes pensei que ele me fosse matar para poder salvar a sua própria pele. Afinal de contas, não o conhecia assim tão bem e não podia ter a certeza de sermos completamente amigos.

- Calma – Disse ele por fim. – Não vou fazer nada do que possas pensar.

Não lhe consegui responder, estava demasiado assustada com tudo aquilo.

- Vamos fazer o seguinte. Eu vou-te amarrar e vou-te levar até à cave apontando-te esta faca. - Falava com a respiração acelerada. - Quando algum deles me perguntarem o que estou a fazer direi que tentaste fugir e que te levei para esta sala para te castigar pela tua atitude. Age como se sentisses imensa dor.

Assinalei que sim com a cabeça. Com isto, Jayden pegou num frasco que parecia conter dentro de si horrorosos restos humanos com imenso sangue. Olhei para ele, apavorada.

- Lamento mas terei que fazer isto. Tenta ignorar o cheiro.

Abriu o frasco e sujou-me com o sangue humano imitando feridas. As mãos dele estavam geladas e tremiam ligeiramente.

Depois amarrou-me e levou-me a rastejar em direção à cave. Até lá fui gritando o mais realisticamente possível e pedindo que me soltasse. Perto da pequena entrada para a cave estavam já uma série de homens reunidos, entre eles o Cruner, que nos perguntou o que se passava com uma expressão facial nada relaxante para o nosso lado e, tal como no plano, Jayden explicou o que "se tinha sucedido". Tentei dar o meu melhor naquela representação teatral dramática até que a voz medonha e poderosa de Cruner interrompeu os meus gritos.

- Porquê que não deixaste isso comigo? Penso que o meu castigo sería um pouco mais… justo. – Disse aproximando-se de mim. – Deixa que eu termino isso.

Agarrou-me pelos cabelos fazendo-me, desta vez, gritar de verdadeira dor.
- Acho que não é necessário – Disse Jayden gaguejando. – Os métodos que eu usei já bastaram para ela se arrepender.

- Será? – Disse Cruner desconfiado. – Até hoje nunca quiseste torturar ninguém a não ser por obrigação minha, e agora irias castiga-la?

- Cruner. Está à vista de nós todos. Vasta observar o estado dela.

Aproximou-se e analisou o sangue que me cobria.

- Será que não usaste nenhum dos meus estimados frascos? – Sorriu. – Espero bem que não. Tenho-os como meus filhos, sabes?

Jayden olhou para mim sem saber o que dizer. O seu plano tinha acabado de ir por água abaixo.

Cruner soltou uma gargalhada forçada e olhou para mim com desprezo. Arrancou da mão de Jayden a sua faca afiada e apontou-a ao meu pescoço.

- Que seja a ultima vez que tentes fugir, espertinha. – Disse enquanto me puxava o cabelo cada vez com mais força. – E tu. – Fixou o Jayden. – Não tentes ajuda-la pois será pior, não só para ela como para ti. Penso que não queres voltar a repetir o tratamento que te fizemos da ultima vez, pois não?

De repente senti uma dor sufocante no braço. Cruner acabara de me fazer um corte ao longo de todo o braço com a faca. Os meus gritos ecoaram por todo o espaço fazendo Jayden desviar o olhar para não ver o meu sofrimento. De seguida soqueou-me contra o chão e ordenou aos outros homens que me levassem para a cave, exigindo que Jayden ficasse a sós com ele.

Na cave fui novamente amarrada, desta vez, de forma mais dolorosa. Amarraram as minhas mãos e pés a pequenos objetos de ferro justos à parede e distanciados do chão, e o meu corpo ficou em forma de “X”, com os braços para cima e as pernas para baixo. Nunca estivera numa situação tão desconfortável pois apenas conseguia mexer a cabeça e sentia as cordas a cortar a carne pelo peso do meu corpo. Na minha boca colocaram um pano, amarrado por trás da cabeça, impedindo-me de falar.

Apenas horas depois é que Jayden entrou na cave e mostrava-se completamente de rastos. O seu rosto traduzia angústia e no seu tronco verificava-se uma enorme ferida em carne viva. Uma vez que não conseguia falar, mexi a cabeça e tentei fazer ruídos para que ele me contasse o que aconteceu enquanto estivera com o Cruner. Mas ele nada disse nem nada fez. Olhou para mim demonstrando pena e sentou-se no chão.

*                      *                         *                         *                                   *

Dias passaram e eu sentia-me cada vez pior. Durante todo aquele tempo ninguém me dera absolutamente nada para comer, nem me desamarraram durante um único minuto. O meu corpo sentia-se dormente por não se mexer durante tanto tempo e as cordas que me amarravam fortemente os braços e as pernas arranhavam já sob feridas profundas. Para além disto sentia uma enorme dor no pescoço por não o conseguir encostar à parede. Sabia que naquela posição não iria conseguir sequer dormir. E as dificuldades não eram apenas físicas. Estava a entrar numa depressão profunda pois queria fugir e não me conseguia mexer. Queria gritar mas todos os sons eram abafados pelo pano. Apenas conseguia chorar. Lágrimas escorriam pelo meu rosto a cada instante pois sentia saudades da minha família, saudades do Mickael, medo do que acontecera ao Matias, medo do que me aconteceria a mim e a todos os outros se não conseguisse fugir dali, mas sentia também, medo pelo Jayden. Desde o dia em que o Cruner lhe ordenou que ficasse junto dele para conversarem a sós, nunca mais me disse uma única palavra e nunca mais quis saber do nosso plano para fugirmos daqui. Não me chegou sequer a dizer qual era o plano que tinha em mente e pelos vistos jamais eu irei saber. Talvez agora esteja por minha conta própria para poder salvar-me a mim e à minha família, mas não será por isso que desistirei.

Um novo dia nasceu.

Por difícil que pareça, consegui adormecer durante algum tempo. Mal abri os olhos, vi o Cruner sentado mesmo à minha frente, a observar-me. Não haviam sinais do Jayden.

- Dormiste bem?

Tinha pavor das intenções da presença dele.

- O Jayden já deve ter comentado contigo que em comparação aos outros que mantive aqui dentro, estou a ser incrivelmente meigo contigo. Pois é: a tua beleza é impressionante e é a tua salvação.

Acariciou-me o rosto e virei a cara.

- No entanto se te portasses bem e fosses mais simpática, as coisas correriam mil vezes melhor. Se as criaturas que passaram por aqui pudessem ainda falar, diriam que tu não sabes aproveitar a sorte que tens.

Focou o meu corpo.

- És uma autentica deusa... Sabias disso?

As suas mãos frias, espessas e calejadas das mortes que causaram, rastejaram pela minha cintura até ao meu pescoço, beijando-me de seguida. Tentei virar a cara mas a outra mão dele não me permitiu qualquer defesa. Ele era doente!

Com isto desamarrou as cordas que me apertavam fortemente os tornozelos e começou a despir-me. Desatei a gritar mas quase nenhum som saída, muito menos se ouvia. E quem me poderia ajudar? Não podia fazer nada mais do que deixar aquele momento horrível acontecer. Não poderia durar para sempre, pensava. Após as minhas pernas serem afastadas, senti a sua carne dentro de mim. A única coisa que desejava era que eu pudesse deixar de sentir a existência do meu corpo, libertando a minha alma daquele pesadelo e poder voar para bem longe. No entanto nem isso era possível. Chorei sem desistir de tentar pontapear-lo, mas parecia que quanto mais lutava, mais prazer ele sentia. Só me apetecia afastar o corpo imundo dele de mim e destruí-lo para sempre. Mas por breves momentos adiava-me a mim mais do que a ele. Por breves segundos, sentia prazer e vontade de sentir mais e melhor e isso fazia repugnar-me, pensar que mereço morrer. Entre toda a violência daquele momento, o pano que me cobria a boca soltou-se e finalmente consegui exprimir aquilo que sentia. Tentei berrar usando as ultimas reservas de energia que me restavam e com uma forte punhada Cruner pôs-me inconsciente.