domingo, 20 de setembro de 2015

Capítulo 26 – Sonho e realidade

Ficou decidido no dia seguinte irmos definitivamente para Lisboa. Estava já tudo preparado mas a noite na praia com o Matias não podia deixar de acontecer. Queria mesmo que as memorias que aqueles locais me transmitiam, ficassem bem guardadas.

Tínhamos combinado encontrarmo-nos lá, como se fosse o primeiro encontro de duas crianças que se sentiam apaixonadas pela primeira vez na vida. Eu ficara de levar o jantar para nós os dois e ele de levar o rádio para ouvirmos música.

Fui a primeira a chegar. Sentia-me ansiosa e insegura, como se fosse dar o primeiro beijo. Pousei as minhas coisas bem perto do mar, estendi a toalha e sentei-me a sentir as ondas do mar a virem de encontro aos meus pés.

Tudo aquilo era estranho. Estive longe daquelas coisas durante dias e pareceu que estivera longe de tudo durante anos. Pelo menos com isso aprendera a valorizar os pequenos momentos da vida. São esses que nos fazem ver a beleza do mundo que por vezes nos parece horrível, que nos fazem saber quem nós somos e que nos faz sentir o infinito do universo em nós próprios. Não há qualquer forma de alguém saber o que nos espera do futuro por isso devemos viver o presente ao máximo. Eu vivia sem valorizar o que me rodeava e de um instante para o outro toda a minha vida se virou do avesso. Agora tudo o que fizer parte da minha vida fará parte dela para sempre. Agora observo cada gota de água, sinto cada toque do vento, ouço cada som à minha volta e saboreio cada pedaço de vida até se esgotar o sabor.

Surpreendia-me a demora do Matias pois ele parecia tão entusiasmado quanto eu na última vez que nos faláramos. Talvez com a ansiedade que sentia me tivesse adiantado demais.

Os últimos raios de sol afundavam-se no mar. Era um pôr-do-sol que adoraria assistir ao lado dele. Olhei para as horas e já passava bastante da hora combinada. Olhei em redor, e nada. Tentei então telefonar-lhe mas não atendia. Fiquei de repente preocupada. Ele nunca se atrasava um minuto portanto só podia ter acontecido algum imprevisto. Deixei tudo como estava e dirigi-me a casa dele. O céu estava agora completamente escuro e nenhuma sombra rondava nas ruas, nenhum movimento, nenhuma luz. Ninguém. Já perto de casa dele, alguém me telefonava. Era ele. Atendi inquietada.

- Estou, Matias? O que se passa?

Apenas silencio se ouviu. Não percebia.

- Porque não apareceste? Matias?!

Novamente silêncio.

- Responde! Se é uma brincadeira para já com isso!

- O Matias está ocupado. – Era a voz do Cruner.

O meu coração acelerou e esforcei-me por ouvir algum outro som. A dor fez-me começar a chorar.

- Por favor não lhe faças mal.

- Relaxa. Estou só a ensinar-lhe que não deve ajudar prisioneiras minhas a fugir.

O meu corpo estremeceu.

- Por favor… Imploro! – Olhei em redor. – Onde vocês estão? Eu posso ir ter contigo e podes fazer-me tudo o que quiseres… Posso voltar para a cave o tempo que quiseres…

- Quero que voltes para a praia e fiques lá bem quietinha. – Ouvi o som de um copo a cair.

Fiquei alguns segundos calada, tentando ouvir algo. Depois a chamada caiu.

O copo que ouvira a cair ao chão fez-me perceber que talvez o Cruner tivesse perseguido o Matias até casa e talvez estivesse lá com ele agora.
Mantive-me abaixada quando me aproximei da casa dele para que não me vissem através das janelas. Caminhei até à porta das traseiras. Abri-a o mais silenciosamente que consegui e entrei ainda abaixada. Ouvi de imediato a voz do Cruner, juntamente com uns grunhidos. Espreitei para a cozinha e lá não estava ninguém. As gavetas e os armários estavam todos abertos. Aproximei-me e estremeci ao observar a gaveta das facas. Avancei, aproximando-me do quarto, ouvindo a  voz do Cruner cada vez mais alto. Não percebia o que dizia, parecia que falava para si próprio. Despercebida calquei o comando da televisão e esta ligou-se. Num ápice fugi para a casa de banho e permaneci em silêncio. Por baixo da porta vi a sombra de Cruner a passar, vagarosamente. Tentei não fazer barulho ao respirar, pois entre o silêncio total, até o orvalho da noite se ouvia cair. Espreitei e vi que ele, não vendo ninguém na sala, dirigia-se para a cozinha. Aproveitei esse instante e corri para o quarto encontrando o Matias encolhido na cama, de braços e pernas amarradas e com a boca tapada por uma camisola violentamente engelhada. Enquanto o desamarrava ele apontou, através do olhar, para a mesinha de cabeceira. Por cima dela não havia nada para além de um relógio antigo. Abri a sua gaveta e vi uma arma. Olhei surpreendida para Matias quando o Cruner entrou no quarto. Em reação, peguei na arma e disparei. No entanto, sendo a primeira vez que pegara numa arma, acertei por sorte no candeeiro e não no Matias. De imediato Cruner agarrou-me a arma, tentando direciona-la para Matias. Este conseguira retirar o pano da boca e tentava agora soltar-se das cordas para me ajudar.

- Mandei-te para a praia para te levarem para a cave. Se preferes morrer, assim será...

Arrancou-me a arma da mão e empurrou-me para o chão.

- …mas primeiro irás vê-lo morrer para garantir que não serás novamente ajudada.

Apontou a arma para Matias e eu voei para o colo deste ao mesmo tempo que senti uma enorme e sufocante dor no peito. Ouvi-o a berrar o meu nome, depois tudo ficou mudo e flutuante. Senti-me como uma pena a ser levada pela brisa suave do mar. Não sabia onde estava mas sentia-me desconfortável pois estava numa situação que desconhecia. Descobri depois que estava a voar num lugar que nunca antes vira até encontrar o meu próprio corpo nos braços de Matias, derramado de sangue. Estava a observar-me a mim mesma numa perspetiva humanamente impossível. Depois o Matias, assim como tudo à volta do meu corpo, desapareceu e o cenário mudou. De repente o meu corpo não estava mais na casa de Matias, mas sim numa estrada de alcatrão envolto de uma multidão assustada e curiosa por perceber o que acontecera. Mas mais assustada e curiosa estava eu pois não percebia o que se passava. Lembrei-me então do que se tratava. Era o cenário de quando eu, Alice, Nicole e os outros nossos amigos, fomos atropelados pelo enorme camião que me derrubou a memória. Aos poucos senti o meu corpo a afastar-se de onde eu o observava. Ou talvez fosse eu que estaria involuntariamente a ser afastada dele. Aquele ambiente estranho em que estava foi escurecendo sem eu quase nem reparar até se tornar num tom de cor completamente preto, exatamente como se estivesse dentro de um quarto fechado sem luzes nem janelas. Tentei procurar alguma espécie de saída. Parecia um jogo, mas não tão divertido como um jogo. Era aterrorizante.


No meio da escuridão surgiu uma pequena luz distante que parecia chamar por mim. Voei de encontro a ela e esta aos poucos foi ficando maior e maior. No entanto algo me impedia de continuar. Senti uma dor semelhante a um susto e senti então que estava viva. Percebi que conseguia respirar ao mesmo tempo que senti o meu coração a bater dentro de mim de forma acelerada. Percebi que a escuridão que via era, desta vez, por ter os olhos fechados. Podia abri-los, no entanto tinha medo de o fazer. Onde será que acordaria? No céu? No inferno? Em casa do Matias? Estaria de volta ao mesmo corpo que tinha? O que raio estava a acontecer?

Senti a respiração compulsiva de uma outra pessoa. Saber que não estava ali sozinha reconfortou-me e deu-me coragem para abrir os olhos: estava no meu corpo, deitada numa cama de um hospital e ao meu lado estava Matias a abraçar-me com os seus olhos alagados em lágrimas. Olhei-o melhor. O seu aspeto estava diferente. Quase não parecia o mesmo.

- Sei o que estás a pensar. – Disse Matias. – Pedi aos médicos para ser eu a dizer-te mas suponho que ficarás igualmente confusa.

Observei-o atentamente.

- Talvez seja melhor descansares primeiro.

- Não... - Custava--me imenso falar.

Olhei para o reflexo de mim mesma no vidro da porta. Também eu estava diferente. Parecia mais velha, quase outra pessoa. Tentei levantar-me.

- Calma...

- Diz-me, o que está a acontecer?

- Apenas ouve e a seguir vou-te deixar a refletir. Só tens que acreditar no que te digo, está bem?

Acenei enquanto ele me acariciou.

- Luciana, estiveste em coma durante 10 anos. Tens 28 anos neste momento.

- O quê? – Se não fosse ele a dizer-me não acreditava mesmo. – Mas... eu lembro-me... Eu... O Cruner estava...

Beijou-me para que parasse de falar.

- Que Cruner? - Suspirou. - Apenas tenta-te lembrar do que verdadeiramente aconteceu. 

Interrompeu-me mal tentei continuar a falar.

- Precisas de repousar. É perfeitamente normal que estejas confusa. Provavelmente tiveste vários sonhos que podes pensar que foram reais…

Por favor… 

O pânico preenchia-me. Aquilo não parecia real. Será que eu mesma algum dia fui real? O que sou eu? Não entendo a minha identidade.

- Amo-te.  – Beijou-me a testa. - É a única coisa que preciso que saibas.

Saiu do quarto de hospital. Tentei interpretar as palavras dele mas nada fazia sentido. Como assim ele não sabe quem é o Cruner? Como assim passaram 10 anos?

Ainda duvidava se estaria mesmo viva. Senti aquele tiro no meu peito de uma forma tão real que é difícil imaginar que tenha sido imaginação minha. Se for verdade que nada daquilo aconteceu, então como poderei saber se não continuo ainda a sonhar?

Horas depois de repouso e pensamentos confusos, Matias regressou ao quarto.

- Estás mais calma? – Sentou-se ao meu lado.

- Não consigo chegar lá… Preciso que me digas como vim aqui parar. Se isto é real, diz-me o que raio aconteceu.

- Vamos começar com calma. Lembraste dos tempos em que vivias comigo, em minha casa?

- Sim. Devido à zanga com os meus pais aproximei-me de ti e...

- Isso mesmo. E lembraste do dia em que me disseste que sentias saudades das tuas velhas amizades, e que desejavas revê-los? - Sentou-se junto de mim e agora massajava-me a cabeça enquanto falava.

- Sim, perfeitamente. Decidimos ir ao cinema… Quando fomos atropeladas. Depois acordei no hospital como estou agora, mas olhei para ti e não te reconheci, assim como não me lembrava de grande parte da minha vida.

Matias observou-me pasmado.

- Não. Isso que falaste depois do acidente não aconteceu. Antes tivesse… Era mil vezes preferível não te lembrares de mim do que me teres deixado durante tanto tempo a sofrer, sem saber quando irias acordar ou morrer pois tanto uma coisa como a outra podia acontecer a qualquer instante… - Os seus olhos lacrimejaram de dor. – Não imaginas o quanto sofri Luciana! Pensei que não sobrevirias.

Olhei-o sem palavras.

- Mas Matias… Como é possível? Tu podes não acreditar mas eu juro-te que o sonho foi tão real como a realidade que estou a viver agora…

- Se queres que te diga, nem eu sei se morri durante estes anos… Talvez estejamos os dois mortos.

- Sonho ou realidade, estamos juntos!

Beijamo-nos.

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